26 outubro 2006

SEMENTEIRAS

SEMENTEIRAS

Como sabem a região do DOURO é pródiga na produção de um precioso néctar, enobrecido com o nome Porto e esta cidade igualmente Nobre e Invicta viu o seu nome associar-se a este “embaixador” e com ele cruzar mares e História levando a bons cais e cálices distantes, o veludo e a volúpia de um vinho que, mais que bebê-lo… o melhor é mastigá-lo!...

Mas, como em tudo que é caso, exemplo, citação ou virtude, também nesta região há a excepção à regra. E é a propósito daquela que vive o texto.

Passei uns dias numa quinta, na região de Lamego, numa altura em que se avizinhavam as vindimas num Setembro quente e farto de estio onde só nos últimos dias, a chuva e o vento se fizeram sentir, a lembrar que, afinal de contas, o Outono se estava a vestir em tons castanhos a intrometendo-se no (ainda) verde da vegetação vindimeira.

Privei com o seu proprietário, André Miguel para um vale de terra fértil a Quinta da Burra Leira, um aprazível local cintado de água, ciprestes e oliveiras onde, idilicamente, uma “casa do caseiro” compõe o cenário, que se não desvirtua perante a beleza de um vinhedo forte, vigoroso e bem tratado, vigiado e cuidado, tendo como melhor cartão de visita a enxertia bem sucedida de pés e mais pés de promissora vinha em pujança.

Guiado por aquele tive a oportunidade de “visitar” a quinta, ouvir atentamente os seus comentários, dicas e explicações sobre o actual estado do vale, mais as análises ao sector, à crise do Vinho do Porto e seu instituto e por via de tudo isto chegamos à zona de excepção. A chamada APA – Área de Plantio Alternativa que, num futuro breve, poderá vir a ser motivo do apodo de “zona económica de excepção” tal a expectativa de lucros e proveitos face aos resultados.

André Miguel mostrava-se entusiasmado:

- Olhe aqui… toda esta extensão de terreno, a perder de vista por quem está fora da quinta, mas pertinho de nós, está juncado com hastes de pimentos, em três regueiros. Ao todo tenho uma produção de milhares de pimentos, centenas direi mesmo…e com cuidado e pormenor, até digo mais…. Para aí uns dez a doze pimentos.

Fiquei estupefacto e maravilhado com esta alternância de cultivo… quantas toneladas de produto projectadas nuns quantos quilos redundariam num fartote de alguns gramas da verde fibra, lindo!.....

-Aqui na Burra Leira desenvolvi outro projecto… venha cá!... Uma maravilha!.... E levou-me a outra impressionante área de cultivo enquanto cortava uma ou outra erva daninha com a sua enxadita.

- Veja aqui!... O que lhe parece?.... São chilas, são chilas, meu amigo ….

Sem palavras espraiei o meu olhar pela vastíssima área onde uma vastíssima vegetação de folhas entubadas, rasteiras, em teia por entre a vegetação, faziam jus às protuberâncias verdes pintalgadas e laranja forte dos caules pendentes, que por certo seriam, a futuro imediato, um autêntico toque de Midas na sua economia. Mais do que uma enorme produção de umas quinze ou vinte…. Chilas… Mais do que umas cinco ou seis… em tamanho razoável de consumo (o plantio fora d’época não perdoou) estava perante um verdadeiro “jardim suspenso” de um socalco para outro nuns formidáveis dois a três metros quadrados, prenhes de esperança.

A este propósito vem a terreiro a pessoa da senhora sua esposa Dª Magda Rita que, gentilmente, me confiou.

- Saiba que as expectativas do André Miguel foram tais que o levaram, numa cuidada gestão de stocks, à priori, a dizer aos seus amigos mais privilegiados (por estimados e merecedores da sua safra) para na lista das compras não incluírem as chilas que ele, de bom grado e satisfação, lhas ofereceria. Afinal de contas a produção dava para “dar e vender”.

E assim em silêncio fiquei cogitando com a reviravolta que o sector agrícola e vitivinícola da região levariam perante estas experiências e no regresso a casa pensei… As pipas de “benefício” que se cuidem…. Os cartões tipo a b ou c que se cuidem… a breve trecho deixarão de fazer parte do alfabeto… ai isso sim!.... A par destes cultivos Dª Magda Rita ainda concluiu: - E os tomates do meu homem? Viu? Plantou para ali uma tomatada tal que só rivaliza com a pepinada que lá pôs.

Soube ainda de outra experiência sementeira.

Dizem as (más ou boas?) línguas que naquela mesma quinta se ensaiou a reflorestação com castanheiros. Eu, nunca os vi, embora à distância geográfica e temporal me ocorra agora lembrar ter ouvido, numas vezes, noutras… sentir, o cheiro das castanhas na quinta do André Miguel…

Ele era lá cada “castanha”… puff !!

Nota do autor em informação de última hora:

Afinal… as chilas… eram abóboras…

25 outubro 2006

REESCREVENDO A HISTÓRIA II

D. DINIS E O MILAGRE DA RAÍNHA

Quem não se lembra de uma das páginas mais românticas da nossa História… não aquela do amor impossível de Pedro por Inês – carregado de dramatismo – mas sim a de um milagre doce, por causa dos pobres e por causa da bondade da esposa do nosso rei D.DINIS.

A sua bondade contrastava com a personalidade firme do rei, mais virado para poemas, plantios e projectos de pinhal, nada sensível às carências dos seus súbditos, em especial aos sem abrigo e miseráveis de outras pobrezas.

Pois bem:

Continuando a reescrever a história eis - nos chegados a tão edificante momento.

D.DINIS vive e reina, preocupado em cálculos e projectos de florestação do seu condado, atento à invasão das areias por devastações dunares e aos graves problemas da extração das mesmas no seu rio, aquele que lhe permite acolher em suas adegas o precioso vinho néctar ( que hoje se chama “do Porto” ). Por outro lado, tem ainda tempo para as artes… para a poesia e suas musas e à noitinha para a sua arte maior que é a de “torrar café”… É vê-lo sentado no seu trono inclinando a “coroa” luzidia aos presentes, tão brilhante quanto o seu ceptro e até um pouco tostadinha pelo sol…um regalo.

Pouco tempo tinha para a sua rainha e seu castelo, deixando que esta zelasse pelo seu funcionamento e seus infantes. Dª Margarida de Bugalheira distribuía, portanto, o seu tempo entre a família, o castelo e os seus pobres… estes o mote de tão suave milagre.

D.DINIS, por força das suas preocupações tornara-se ríspido, irritadiço e muito pouco paciente e não concordava com aquele tão humano e tão altruísta gesto de Dª Margarida por tantos e tais desvalidos.

Foi por isso que um dia, naquele lindo e abençoado dia de exaltação dos sentidos, cruzando-se com a matriarca de Bugalheira no Pátio das Manobras, junto à Alameda dos Limões, reparou no seu volumoso braçado e esta ao ver o seu senhor, já com tão duro cariz, apertou ainda mais o seu colo tentando esconder o pão que levava para os seus pobrezinhos.

Perante tamanho volume (e esforço de o dissimular de sua amada) D. Dinis endureceu ainda mais o sobrolho e porque ao momento se entregava à musa da poesia, disparou à queima-roupa….

ONDE IDES SENHORA MINHA

QUE ANDAIS EM TÃO LEVE PASSO

VÓS QUE VINDES DA COZINHA… (DIZEI – ME, DÚVIDA MINHA)

QUE LEVAIS EM RECATADO REGAÇO?

POR CERTO, POR ACTOS NOBRES

POR MISERICÓRIDA E BOA ACÇÃO

NÃO ME DIGAIS SENHORA, QUE LEVAIS AOS VOSSOS POBRES

QUILOS E QUILOS DE PÃO…. OUTRA VEZ, NÃO!

VEJO-VOS AGORA ESFORÇADA

OFEGANTE E ANSIOSA

QUE OUSO, ANTES DE MAIS

PEDIR-VOS QUE MOSTREIS… DE UM GESTO SÓ, DE ASSENTADA

O OBJECTO DE CARGA TÃO VALIOSA…

Ao que responde Dª Margarida de Bugalheira

SENHOR MEU… SENHOR DOS MEUS ALENTOS

QUE VOS POSSO OCULTAR?

FALAIS DE PÃO NO MEU REGAÇO

NÃO POSSO EU ESCOLHER? NÃO POSSO EU OPTAR?

E SE EM VEZ DESSE PÃO, FOR FRUTA, ARROZ OU ATÉ PIMENTOS?

OU ASSIM VALER A MEU DOENTE BRAÇO?

PEÇO-VOS MELHOR JUÍZO

MEU REI…QUE TÃO BEM OUTORGAS

ATENTAIS A MEU TINO E SISO

NÃO VOS MINTO, NÃO PRECISO, MEU SENHOR

E Abrindo o seu bento regaço….Margarida de Bugalheira revela-se e dá-se o delicado milagre!!!

São abóboras meu senhor !!!!

SÃO ABÓBORAS… MEU SENHOR !!!!!!!

E o Rei poeta lá se foi, contente e rindo troando pela alameda o seu preferido poema…

ONDE IDES SENHOR DOUTOR

COM ESSE PASSO APRESSADO

VOU A CASA DO……………….

SINES E OS SENIS


- Sines
- Doca dos Rebocadores
- 15 Outubro de 2006
- 09,30 horas

Eu e o meu amigo Edmundo Barros aprontamos o material da pesca para passar uma manhã amena em tranquila cavaqueira, beneficiando da paz e sossego que só o mar transmite. O tempo? a condizer! suavemente nublado espaçado a azul por entre os brancos e cinzas e um vento sul, brando, agitando o mar de mansinho.

A doca estava vazia, creio que só nós acreditávamos numa boa safra (a do dia anterior… uma miséria… nada) e isso madrugou-nos. Na enseada, os rebocadores davam o tom azul de outra textura, complementar, à tela.

Edmundo preparava o material e mariscava o aço quando me chamou a atenção para a pequena embarcação que bem parecia à deriva depois de ter sido atrelada por uma outra.

Era uma, de recreio, de uns cinco metros (se tanto) com quatro pessoas a bordo. Uma pequena cana de pesca, ao alto, e o aspecto geral do conjunto indiciava um grupo de experimentados navegadores que (pela enésima vez) iriam fora da barra para mais uma jornada com altas expectativas de pescado. Mas não ….

- Aqueles ali não põem o motor a funcionar !!!

Olhei para o meu amigo, depois para a frente. Para além do motor principal até tinham um outro (mais fraquinho e que me pareceu ser para uma eventualidade) pelo que assumi:

Edmundo… com dois motores, não há problema concerteza.

Mas a verdade é que algo não estava bem e “a boia não batia com a gaivota” (a frase, no mar, ganha esta nuance).

Primeiro: Os “campeões” fartaram-se de dar ao zingarelho, que é como quem diz… puxar ao cordel… bloq, bloq, bloq… e nada. Uma, duas e muitas outra vezesbloq, bloq, bloq….

Segundo: Afinal de contas não seriam “tão” experimentados como o aspecto denunciava. Numa segunda observação deu para perceber que os quatro faziam um esforço para se movimentarem com alguma destreza (naquele espaço, assim exíguo… tsst, tsst, tsst) e quando chegou o momento de pegarem num remo (um só, pequenino) ficamos logo a perceber que o melhor era preferível andar de bicicleta (com os olhos vendados) do que fazer aquela figura.

Terceiro: Numa outra perspectiva, deu para ver que, afinal, a lotação não condizia com o número de lugares no livrete da viatura. Para um embarcação daquelas o quarto ocupante só teria lugar à ré e a dar com os pés, tal como um motor…. fora de borda… isso, isso…a nadar e a empurrar.. vá lá…

Quarto: E para “apimentar” a cena… a água estava mesmo “pertinho” da borda que é como quem diz, se tinha “linha” de flutuação, a mesma tinha sido desviada para o metro da Praça do Comércio.

A tal ponto notório foi o desiquilíbrio da embarcação que um dos “maduros” se dirigiu para a proa sentando-se mesmo à pontinha, na esperança de melhorar o centro de gravidade da coisa…

- Eh pá, ó Próspero… Quanto é que me pagariam para ir para o mar nestas condições?!

- Depois destas tentativas todas, e o que penaram, ainda se arriscam a sair naquele jeito.

- Edmundo, deixa lá…. São mesmo apanhados de todo, estão aqui estão no banho, não tarda.

Foi aqui que me ocorreu a cena do filme O TUBARÃO na qual o biólogo pretende desencorajar os (bravos) locais de saírem para o mar em busca do bicho, nos seus barquitos, e perante o insucesso, exclama, em desalento: Vocês vão morrer, todos!!!!....

E lá foram.

Não é que nós os víssemos a zarpar, não senhor….

É que no entretanto desinteressamo-nos da questão e entregamo-nos denodadamente à faina, razão de ser da viagem, que no fim de contas não deu nem um peixito e nos pôs em “apuros” perante as nossas senhoras. Como justificar à minha Cidália e à Dª Ana a falta do almoço? E já não íamos a tempo de apanhar a peixaria aberta…. Azares.

Vai daí, o tempo passou e nós a esgotar os nossos recursos e habilidade para dar alma ao balde com uns peixitos quando olhei para a entrada da doca e exclamo:

- Edmundo? Olha quem vem ali! – Não me sendo possível evitar uma forte gargalhada – Estes tipos são do caraças….

Então apostámos em observar a cena. Neste ponto, já nos ríamos não pelo que víamos mas por antecipação.

Um pescador no seu barquito, de avental… dos verdadeiros, entrou na doca a rebocar o“catita” de recreio e nele os três marujos agarradinhos à…. Espera lá! Eu disse três? Mas eram quatro? cadê o outro?

O pescador largou a corda, deu meia volta e voltou para o mar enquanto as nossas estrelas ficaram de novo à deriva perto da rampa do clube. Foi nesse momento que as nossas mentes sossegaram…. Afinal lá estava o outro, tolhido e encolhido de todo… mas lá estava. Ia à frente ao lado do piloto, quase imperceptível.

Desenrolou-se de novo a cena do remo… chlap, chlap, chlap… e a custo lá conseguiram acostar à rampa. De imediato o diminuído foi ajudado pelos companheiros e levado para a rampa, onde se deitou, imóvel, à custa de um colossal enjoo… “almareado” como diz o povo, almareado…

Entretanto chegamos à cena maior (para mim) desta aventura!!! A retirada do casco para o seco.

Vai de descair o carro com o atrelado para a água. Lentamente, com prudência e ajudado na manobra por um deles… Venha!!! Venha!!! Venha!!!... Depois com a destreza já imaginável pegaram na cordinha e puxaram o barquinho para cima do (já submerso) atrelado e … (neste ponto, vale a pena referir que o automóvel estava “mesmo” com a traseira “na” água) vão de abrir a porta da bagageira para ser possível accionar a manivela de tracção. Ora, de porta levantada e com o ondular das águas, o mar lá subia parte da rampa…passava a frente do carro… e logo descia lavando pneus e a parte debaixo da viatura (o traseiro… pelo sim pelo não, lavadinho por baixo, como dizia o outro) e eles a dar à manivela…clinck, clinck, clinck e as ondinhas, suavemente, a tirar medidas ao parachoques, para cima… para baixo.... e o barquinho a subir, a subir.

Já falei nos rebocadores, aquelas máquinas infernais (lembro-me do nome de um deles… o Spartacus) que puxam os mastodônticos navios que aportam a Sines, e como estávamos na sua doca, o vai e vem destes era bem regular pelo que, ao momento, eis que entra um revolvendo aquele espelho d’agua e revitalizando o bater das ondinhas, que então sim, invadiam a rampa com gosto, sem quebrar, espraiando-se cimento fora…fshhh, fshhh, fshhh.

E não é que aqueles totós nem isso previram? E não é que as ondinhas galgaram de tal modo que o mar quase, mas mesmo quase, entrou pela mala adentro?

Bom…

Se tivesse entrado (e a bagageira era bem espaçosa) teria provocado uma baixa na maré e aí, talvez tivéssemos tido a sorte de iscar uns peixotes e safar a jorna. Mas não, roçou a matrícula, um pouquinho mais acima talvez e quedou-se por aí…. Foi pena….

Ah!!! Mas já me esquecia!!! Depois de terem retirado o carro, raspando a chapa de matrícula do atrelado pela rampa fora, eis que se levanta (só nessa altura) o esverdeado marujo, a custo e ainda cambaleante, vencendo a inclinação, regressando ao plano vertical assente no horizontal, sem mais ondas…

SINES, lido ao contrário, dá “SENIS” e… francamente, pouco faltou para isso… ancoraram nos totós, e pronto.

05 outubro 2006

REESCREVA-SE A HISTÓRIA - 1ª PARTE

D.Dinis, O Lavrador, vive...
A sua rainha santa - D.Margarida de Bugalheira ( e não Isabel de Aragão, como conta a história ) lá está sempre a seu lado, solícita e paciente, sempre atenta às suas inspirações.
Não se lhe conhece o epíteto de "poeta" mas há quem o tenha ouvido declamar, com algum recato e pudor, diga-se, rima do mais refinado calibre... como aquela que se perde nos tempos... Onde ides, senhor Doutor, com esse ar tão apressado ?? Vou a casa do.... bom, fiquemos por aqui. O mistério daquele seu pudor e recato teve a ver com a presença do seu Infante, D. José de Bugalheira, num lauto jantar com familiares onde, por entre embaraço mal contido, lhe teria sido mui difícil "explicar" o conceito de "garrafa" num contexto erótico-romanceado. Adiante.
Tornou-se, isso sim em "O Lavrador" depois de anos e anos a cavalgar no asfalto.
Eu, cronista e presente na comezaina, tive o privilégio de o acompanhar em ronda aos seus domínios naqueles dias lá passados por nefasta ( mas vencida ) enfermidade da senhora de Bugalheira e assim testemunhar os seus dotes rurais.
Vastas e vastas extensões de abóboras, plantadas nos socalcos de suas propriedades, preguiçosamente estendidas ( foram semeadas fora de tempo ) por entre chão de vinhas e néctares, como se de brincos se tratassem a ornar singelas e delicadas orelhas de damas da corte. Verdes folhas em cascata com pendentes alaranjados fortes e de vários calibres a acariciar os pescoços finos das damas vinhas. A seu lado, as suas plantações de pimentos e tomates, eram simples e tímidas expedições rurais.
Mirando o altivo D.Dinis e vendo o cintilar de felicidade no seu olhar ( ei-lo às sete da matina "cava e rega" diário ) percebe-se a vocação de... " O LAVRADOR ".

04 outubro 2006

Vida de Capelão

O título leva-nos ao tão conhecido fado “RUA DO CAPELÃO” … “ Tenho o destino marcado, desde a hora em que te vi… lá-lá-lá-la-ri-lá-lá….

Mas não.

Isto hoje tem, de facto, a ver com a força do Destino. Mais…. Tem a ver com ele e com o divino patronato, entendendo que um sacerdote é efectivamente, não só um “servo” mas também um fiel empregado do Criador.

Não vem para o caso se auferia o ordenado mínimo ou mais ou se, como em voga na actualidade, estava integrado em algum tipo de agência de emprego repartindo a sua massa salarial da forma mais desequilibrada possível…. Uma para mim !!! Três para a agência !!! adiante ……

De fictício tem os nomes da localidade, do padre, como as coisas se passaram e mais um ou outro interveniente, por uma questão de respeito. De resto aconteceu mesmo, e passo a contar.

Honorato era o padre daquela aldeia. Algures por entre as cordilheiras divididas por um rio serpenteante, vasto e raia natural de duas importantes zonas no Norte do País, o seu “povo” respeitava-o e tinha-o como exemplo a citar quando se falasse dos atributos de um padre.

Em Bancres, mesmo antes da Comissão de Festas do Senhor da Aflição, em importância, o topo das atenções era o Padre Honorato. Havia mais de uma vintena de anos, trinta até, se calhar, que aquele pastor enredava as suas ovelhas nos melhores caminhos para os ovis do Senhor, a esforço de muita prédica, práticas e homilias, isto para lá das prestações sociais e comunitárias que faziam dele mais do que um servo…. Um santo…. Isso sim…

Anos e anos a fio a “dar-se” à sua paróquia e ás suas gentes. Uma missa de graça para isto, uma participação na procissão ( de borla ) para aquilo, uma saída com os confrades da comissão para ajudar n’aqueloutro, uma incessante e ininterrupta voluntariedade para tudo que fosse e dissesse respeito a Bancres… e olhem que tempos difíceis se passaram por aquele lugarejo!!! sim senhor… tempos de fome, falta de trabalho e condições dignas de estar das pessoas, com restritos horizontes e poucos proventos. Basta lembrar que aqueles vinte ou trinta anos de vida e labuta foram testemunhas de uma emigração desenfreada para lá dos Pirinéus, de uma guerra colonial a ceifar vidas e mais almas em três frentes – sem contar com a Índia, antecâmara dos conflitos – e para nem tudo ser mau - … pelo menos promissor, uma revolução dita dos cravos veio dar forma a uma nova forma de vida onde de cravos se passou aos “cravas” dando apenas umas migalhas ao grosso da coluna, para não contestarem muito.

Durante estes bilros que teceram a manta dos dias, até há bem poucos meses, aquele santo… o padre Honorato, lá esteve na primeira linha.

Mas nada disto teria sido possível se ao seu dispor não tivesse um carrito. O seu velho, resistente e sempre fiável meio de transporte que nunca o deixou ficar mal, nunca avariou ou se negou a “participar” no seu missionário espírito. Dizem que, para além das bielas, pistões e demais ferrarias, o seu excelente e espartano comportamento se devia ao pequeno depósito de “ bpf “ que é como quem diz… BentoProtectorFuel que guardava a santificada água tirada directamente da pia baptismal.

E assim foi, todos os dias, todos os meses, todos os anos.

Até que desceu do calendário a data dos ( tais ) vinte ou trinta anos de presença na paróquia que proporcionou ao povo o momento único de poder agraciar e agradecer a tão humilde e singela figura, tanta dedicação e devoção.

O senhor Ezequias mais o Roberto d’Azenha, encabeçando uma sólida e determinada comissão – desta vez não da Aflição mas da (re)compensa(ção) fizeram voto de silêncio entre o povo e este, de alma calada e voz escondida ( Honorato não podia saber ) trataram de fazer um peditório para a “prenda do senhor Padre” sendo o objecto da mesma, imaginem !!!... um carro novo !!!!! Isso mesmo, um carrito novinho em folha para que santo Honorato pudesse, com segurança, andar nas estradas para seu belo prazer ou a desenvolver a sua caridosa, voluntaria e prestimosa actividade.

A assim foi.

Toda a gente deu, uns mais do que outros, uns mais do que podiam, e outros ainda o que não tinham, para lhe proporcionar tal alegria !!!

Festa, foguetes, banda a tocar no coreto e toda a gente, todo o mundo a correr para o adro da igreja, uns a pé, outros de mota, outros de carro e… imaginem… alguns de carreto, para “darem” o seu presente ao “nosso querido” Honorato.

Ele foi vinho, picnicadas, cervejas e festarolas e “torcidas” mal curadas e um “oh!!!!” de pasmo, incredulidade e espanto que deixou o padre quase apoplético, quase a desmaiar, quase a pecar, idolatrando o novo “ bolinhas ” como há muito não fazia para com os seus ícones na casa do Senhor e isso Ele, concerteza, perdoar-lhe-ia.

E foi assim que se eternizou o nome deste padre, desta terra e destas gentes.

Umas semanas depois, antes de vencer uma primeira ponte, o padre Honorato esqueceu-se de uma curva e precipitou-se ravina abaixo, entregando a sua alma ao Criador.

Coisas do destino?

Ajuste de contas patronal?

Injustiça e desperdício?

Gratificação para além da remuneração, dando como bónus uma viagem ao Paraíso?

Venha o diabo e ….. escolha.